Instagram YouTube
CADU

A Nova Arte do Encontro

Contam os livros de História que o chiado do jeito de falar dos habitantes do Rio começou por exibicionismo. A família Real vinha para se instalar no Brasil, fugindo da expansão napoleônica, em 1808. Aqui, já se falava com um sotaque diferente ao de Portugal, mas para se mostrar mais sofisticado, o carioca aproximou a língua do que entendia ser a forma chiada de falar de Lisboa, sede da Côrte. Era uma forma de acesso, um improviso para bem receber e se aproximar driblando hierarquias.
Mais de duzentos anos depois, o desejo de aproximação e de acesso ainda depende de muito improviso. Mas chiar, agora no sentido de reclamar, não adianta muito. É hora de novas estratégias de mobilidade: encontros que gerem transformação. A cidade das obras e dos grandes projetos (de segurança, de trânsito, de eventos públicos) muda a olhos vistos, mas há outra alteração pedindo pra acontecer. A das pessoas que fazem e pensam o Rio: nós. O Travessias 2013 é mais que uma exposição na favela, portanto. É um projeto de transformação de como olhamos para nós mesmos, para as favelas e para a cidade. Expor para reunir. Convidar para conviver. Olhar de outra forma para participar.


O Observatório de Favelas completa dez anos de autonomia em agosto. Começou com um programa que fazia parte do IETS. Sempre teve como primeiro objetivo a produção de conhecimento sobre favelas e periferias, para influenciar a formulação de políticas públicas de redução de desigualdade. Para um dos fundadores, professor Jorge Luiz Barbosa, a “ênfase é na atuação em redes colaborativas interinstitucionais, compartilhando experiências de financiamento, gestão e realização de ações”. A meta é promover cidadania e mudar a forma como se vê um território popular. Afinal, como diz outro fundador do Observatório, professor Jaílson de Souza e Silva: “A favela é vital para a identidade do Rio”.
O primeiro Travessias, em 2011, nasceu de um insucesso e de um encontro. Um projeto de exposições do artista plástico Vik Muniz foi cancelado, mas reuniu pela primeira vez o professor Jaílson com Luiza Mello, dona da produtora Automática. O Observatório, que abriria um galpão de arte na Maré, naquela oportunidade, vinha crescendo e queria fortalecer a cultura como área de atuação. Luiza, acostumada ao circuito de museus e galerias, gostava da idéia de um novo espaço fora do circuito Centro-zona sul. Aquelas primeiras conversas sobre Rio e arte foram ser aproveitadas, então, no Travessias. “A democratização das artes é um elemento fundamental para transferir o processo de encontros na cidade” – diz Jaílson. “Trabalhar com arte fez minha vida ser melhor. Eu quero que o galpão seja freqüentado” – diz Luiza.
“Encontros” e “transformação” são conceitos fortes também para o segundo Travessias, com abertura no dia 13 de abril. Ao levar para a favela um galpão de artes visuais com exposições de alto nível, incentiva-se a circulação por uma região que, de outra forma, não atrairia curiosidade. A Maré deixa de ser um lugar só para os moradores, e passa a ser associada à arte, ao entretenimento e ao pensamento. E, este ano, o Vik Muniz daquele projeto que não foi para frente é um dos artistas convidados a expor.
Claro que conceitos e planos precisam acontecer para fugir do mundo ideal. Por isso, o Travessias não pretende ser só uma exposição de obras contemporâneas. O que já seria muito legal. Em cima do princípio de que Novos Cariocas estão redefinindo as interações da cidade, quatro sábados nos próximos dois meses vão ser oportunidades para ouvir e trocar ideia com alguns desses seres que tem algo a dizer. São os ENCONTROS.
O Novo Carioca pode ser descrito como um cara que expressa sua identidade na circulação pela cidade. Uma forma de defini-lo é como “um sujeito cuja subjetividade está encarnada no corpo e não em equipamentos, molduras, objetos. Sua estratégia de existência combina a visibilidade com a mobilidade” – segundo o professor Jorge Luiz.
MV Bill, Marcelo D2, Marcelo Yuka, Fernanda Abreu, Marcus Faustini e Ronaldo Lemos (esse é mineiro, mas isso é detalhe) são alguns dos Novos Cariocas que vão ter espaço para falar nos ENCONTROS do Travessias. O diretor de teatro e de cinema Marcus Faustini, por exemplo, é um dos autores do conceito de Novo Carioca, ao lado dos professores Jorge Luiz e Jaílson. “É um cara que faz recombinação. Antes era o artista que fazia esse papel, mas isso pode ser uma prática para muitos no Rio. Temos que levar a discussão da cidade para o sujeito”. O advogado e especialista em cultura digital, Ronaldo Lemos, acha que o Novo Carioca pode levar o Rio a “se tornar a cidade mais interessante do ocidente, um laboratório que pode gerar ideias para novas formas de convivência e desenvolvimento”.
Além de arte contemporânea, os assuntos dos ENCONTROS ampliam o alcance do Travessias para temas como dinâmica social, cidadania, mobilização e tecnologia, por exemplo. “Meu sonho é montar um laboratório de desenvolvimento de produtos que levem em consideração as necessidades da população de baixa renda, mercado que inclui cinco bilhões de pessoas que ainda não têm acesso a tecnologias de ponta” – conta Ronaldo. Ele vai falar de questões legais no uso de tecnologia no Brasil.
Já Marcus Faustini vai em outra direção: quer mostrar exemplos práticos de como o público pode participar da curadoria de festivais e exposições, como o próprio Travessias. “Museu é lugar de ação, não de contemplação. O público não pode ser só espectador, tem que participar de orçamento, da legitimação do que é e não é arte e do que deve ser exposto”. Pensando bem, não é exatamente outra direção: é apenas outro caminho para permitir que cariocas circulem em áreas onde não transitam usualmente.
A questão é desenvolver o olhar para um novo sotaque do Rio, uma nova ginga. As artes visuais ajudam a entender e pertencer ao mundo. O Travessias é uma proposta de assumir a responsabilidade por contar o que é a favela que se quer, a cidade ou o carioca que se quer ser. Ou, dando a palavra a alguns Novos Cariocas: “a forma como você pensa o espaço termina definindo as ações, as políticas públicas e as formas como as pessoas vivem e agem” (Jaílson). Faustini: “O Travessias é sensacional porque o território deixa de ser representação para ser suporte”. Jorge: “É a radicalização dos encontros de desejos, vibrações e emoções de diferentes pessoas que, ainda hoje, são estranhas entre si, apesar de habitarem uma mesma cidade”. Luiza: “A cidade tá mudando porque a gente tá fazendo”.